Vassouras, 14-15 de março de 2014
 
 

Acordo e abro as persianas. Nada me havia preparado para essa vista, já que chegáramos na véspera, à noite, cansadas e irresistivelmente atraídas pelas lindas suites da fazenda, pelos lençóis frescos e cheirosos, pelos banheiros moderníssimos suavemente azulejados em tons campestres. Só deu tempo para um chuveiro  relaxante e um mergulho no sono do passado.

Agora vejo, sob um céu de Magritte, de um lado um antigo terreiro de café, preservado como se a colheita fosse entrar naquele momento, e do outro um amplo gramado, onde pasta um tropinha de bezerros de búfalo. Um pouco mais adiante,  à esquerda, a velha mas imponente tulha e, à direita,  um pavilhão restaurado à beira de uma piscina reluzente. Mais além, morros verdes ondeantes a perda de vista.

Nunca havia feito o caminho que me levou até lá. Tudo começou com um seminário interessante, na cidade de Vassouras, sobre a recuperação do Vale do Café. Um grupo de mulheres e homens inteligentes e dedicados (entre os quais Bernadete Braga, Bia Martins Costa, Marcelo Motta, siga o seguinte link: http://planetaorganico.com.br/site/index.php/valesustentavel2014/) deram sua visão iluminada do que pode ser feito alí. Já me sinto parte dessa idéia. Vassouras é uma graça de cidade, milagrosamente (sei que não há milagre algum envolvido, mas é assim que se diz!) preservada. Se há alguns deslizes arquitetônicos inevitáveis, são poucos comparados com outras cidades do Rio de Janeiro. A praça da igreja e o casario circundante são um exemplo da graciosa simplicidade do século XIX interiorano no Brasil.

A cidade vive sob o culto da memória de Eufrásia Teixeira Leite. Uma personalidade fascinante que mereceria virar personagem de filme. Sua Casa da Hera reflete ainda tudo o que deve ter sido a época em que  a cultura do café florescia   Ao percorrê-la, não consigo reprimir uma impressão de déjà-vu que me remete a outra parte do mundo com grandes afinidades com esta. Penso nos escravos, nas plantations e nas casas elegantes mas austeras de Savannah e Charleston, na Georgia e na Carolina do Sul.

Passamos da explanação teórica à visita in loco. O carro nos leva primeiro à Fazenda São Fernando, infelizmente fechada para obras. Sua massa imponente é tudo que conseguimos ver no lusco-fusco, essa  “heure bleue” indecisa tão incômoda para os olhos e, há quem diga, para a alma. Mas dessa visão noturna já emana uma impressão de esplendor rural.

Da misteriosa meia-luz da  São Fernando para o fulgor da São Luiz da Boa Sorte, onde nos esperava uma recepção extraordinariamente generosa e fidalga. Primeiro um tour pela casa restaurada com paixão e bom-gosto pelos seus atuais donos, Nestor Rocha e Liliana Rodriguez, nos deixa boquiabertos. Tudo minuciosamente cuidado, dentro e fora da esplêndida casa.  Os detalhes arquitetônicos, as cores, os móveis de época, os jardins, os gramados, as cavalariças e os cavalos soltos pastando no crepúsculo, estou certa de que a casa nunca esteve tão perfeita. Ao tour seguiu-se um jantar na imensa cozinha da fazenda, com uma qualidade e uma fartura que tampouco deviam existir à época dos barões. A analogia que fiz acima entre a Casa das Heras e as casas do Sul dos Estados Unidos não se aplica propriamente aqui.  As plantations norte-americanas eram infinitamente mais austeras, pelo menos assim parecem aos nossos olhos modernos. Nem mesmo Mount Vernon, a casa de George Washington, pode se comparar com a fazenda da Boa Sorte tal como a vemos hoje. Monticello, a propriedade de Thomas Jefferson, é francamente modesta em comparação.

Outro generoso convite nos leva então à Fazenda Aliança, propriedade de Josefina e Nicolas Wollak,  que nos oferecem o pernoite. O cansaço e a escuridão não nos impediram de perceber a beleza da estrutura. Uma luz  suave iluminava o corredor que nos levou aos quartos, tão numerosos que as 5 hóspedes que éramos não pareciam ocupar nem a metade. De manhã, a surpresa que descrevi acima, e muito mais. Uma casa de fazenda sublimemente elegante, mobiliada com um gosto extraordinário que combina perfeitamente peças modernas e coloniais. Quadros e esculturas de grande qualidade, entre os quais um Giacometti no centro da grande sala. A capela preservada com um oratório policromado. Um “study” à inglesa com naturezas mortas e outros belos quadros figurativos.  Fazenda de gentleman-farmer, só que no caso a responsável e alma do negócio é uma lady farmer cuja beleza refinada e graciosa iguala seu  espírito empreendedor.  Cria búfalas leiteiras e carneiros de corte, e está de olho no extraordinário café do jacu, estranha guloseima que está, parece, fazendo furor. A idéia é meio nauseabunda (termo absolutamente apropriado…) e, pessoalmente, me atrai pouco. Mas acredito que esse Vale encantado do Paraíba voltará a ser povoado organicamente de tradicionais pés de café de alta qualidade, com ou sem a contribuição do jacu! É para isso, além de um mundo de outras possibilidades, que está voltado o esforço descrito no seminário sobre o Vale Sustentável.

Que cenário, pensei, para um Festival de Música!  Pois não é que até isso já existe! Estarei lá, sem dúvida, embora a programação ainda não tenha sido divulgada. Mas em tão nobre palco, só pode ser de alta qualidade. Até julho, pois, no Vale do Café.