Sábado, 9/ 11 /2013 

Theatro Municipal do Rio de Janeiro

Orquestra Petrobrás Sinfônica

Isaac Karabtchevsky, diretor

Mischa Maisky, cello

P.I. Tchaikovsky – Aria de Lensky (Eugen Onegin)

D. Shostakovich – Concerto no. 1 para violoncelo e orquestra

I. Stravinsky – A Sagração da Primavera

 

 

           

                        Abre-se uma nova página para Violetta da Gamba.  Da velha Europa, mudou-se para o Novo Mundo, e agora para o Atlântico Sul. Outra língua também, latina dessa vez, mais adequada às suas origens. Não esperava tão cedo encontrar nesse ambiente matéria para suas crônicas. Mas o que tinha ouvido sobre o deserto cultural nessas praias é mentira.  Se não há a estonteante e até, às vezes, angustiante oferta de um palco como o de Nova York, há “água de beber”, e não pouca.

 

Acabando de chegar, tenho notícia de um concerto no Theatro Municipal, e que estréia! Um dos grandes violoncelistas da atualidade, Mischa Maisky, tocando Tchaikovsky e Shostakovitch, com a Orquestra Petrobrás Sinfônica sob a batuta de Isaac Karabtchevsky.

 

No começo, grande decepção – lotação esgotada! Mas a generosidade de um amigo me permite logo contornar esse problema e acessar excelentes lugares na platéia do Municipal. Outra surpresa, o teatro está deslumbrante, reformado, bem cuidado. Ao ler, no ótimo site do Theatro, sua história e a de sua restauração, dou-me conta do imenso esforço e da dedicação de muita gente, outro desmentido do que tanto se diz sobre a pobreza da vida cultural neste país.

 

A bela brochura disponível logo na entrada nos dá logo uma idéia do ambicioso programa dessa série da Orquestra e de seu diretor artístico.  Uma programação variada e fora dos terrenos mais conhecidos. Ênfase em compositores contemporâneos e brasileiros, sem cair, no entanto, na tentação da vanguarda a qualquer custo. Amplo espaço para Tchaikovsky, nos 120 anos de sua morte, e para Wagner, no bi-centenário de seu nascimento.

 

Uma sensação de antecipação e aconchego ao afundar na poltrona de veludo, mas também uma observação menos agradável. Muitas cadeiras vazias no teatro supostamente lotado. Um amigo me conta da dificuldade de se comprar entradas para o Municipal. Com tantos aspectos positivos, tanto nas instalações quanto na programação, porque não facilitar ao máximo o acesso? Percebo, ao entrar mais uma vez no site, o tom meio zangado, carregado de advertências, da bilheteria. Estranho.

 

Tantas observações fazem com que esta crônica possa ficar longa e pesada. Mas é apenas a primeira e são muitas as novas impressões. No público, por exemplo, nota-se a mesma mistura que se vê em todos os teatros do mundo. Gente bem vestida, gente muito à vontade; a terceira idade um pouco rígida, de um lado,  e a juventude solta, de outro, lado a lado, mostrando que existe um terreno de encontro entre as gerações; e as figuras universais que comparecem mais por dever de aparecer do que por interesse pela música.

 

É muito comum o violoncelo tomar lieder e arias de ópera emprestados para seu próprio repertório. Os lieder de Strauss (Richard, é claro) e de Mendelssohn, por exemplo, prestam-se esplêndidamente a serem cantados não pelas vozes para as quais foram escritas, mas pelo instrumento que as cobre todas, do baixo profundo ao soprano ligeiro. Mischa Maisky não foge a essa tentação, ao incluir, em sua farta discografia, gravações de inúmeras transcrições de canções de Schubert, de Brahms, de Mendelssohn, de Poulenc – a lista é longa. Assim é que não surpreende que escolha começar seu concerto pela maravilhosa aria de Lensky, da opera Eugen Onegin de Tchaikovsky. O que nunca deixa de surpreender é sua estranha indumentária. Eu já estava esperando a camisa sedosa de Issey Miyake e o colar barroco e brilhante. Desta vez, ele se superou. A seda da camisa era azul-rei e o colar digno de Catarina a Grande. A platéia ficou assim eletrizada desde sua entrada no palco.

 

Continuou eletrizada pelas suas interpretações, a julgar pelo aplauso delirante que seguiu. Fico assim um pouco constrangida em discordar ligeiramente de tanto entusiasmo.  Minha primeira sensação foi de que havia algo peculiar na sonoridade de seu Montagnana (se é que era seu instrumento habitual, não sei ao certo). Uma certa rouquidão, umas interferências no som habitualmente redondo e aveludado do instrumento. Pode ser um problema de acústica, ainda não conheço bem a sala. Mas pode também ser uma certa perda de finura no manejo do arco. A meu ver, sua interpretação teve momentos de fluência e grande beleza, mas ficou um pouco comprometida por essa rouquidão e quebras inexplicáveis no fraseado – sendo a condição sine qua non de interpretar peças destinadas a outro instrumento manter a intenção musical do meio original. Em alguns momentos, na versão de Maisky, o canto parecia indevidamente interrompido. Conhecendo de longa data a técnica perfeita do músico, ocorre-me que tenha sido intencional, para acentuar o soluçar do Lensky às vésperas de seu encontro fatal com seu melhor amigo.

 

O concerto de Shostakovich não desfez essa primeira impressão. Maisky não esconde seu romantismo, que afeta até mesmo suas magníficas interpretações de Bach. As três sonatas, com Marta Argerich, são sem dúvida gravações de referência, assim como as sonatas de Beethoven. Sua maneira de tocar as Suites, a bíblia dos violoncelistas, pode ser muito discutível, mas é irresistivelmente atraente. Maisky nos deu uma amostra disso ao escolher, para o irrecusável bis, a sarabanda da quinta suite, em dó menor, onde pôde, sem receio, soltar sua veia romântica. Surpreende assim sua abordagem feroz do concerto de Shostakovich, em que seu arco se fez pesado a ponto de parecer um serrote no primeiro movimento, resultando num a sonoridade mais raivosa do que poderosa. O concerto é extremamente difícil e a sensação era de que Maisky não estava totalmente à vontade. O esforço de tocar se fez visível e audível demais. Houve momentos de grande Maisky no segundo movimento, que poderia entretanto ter sido um pouco mais sinuoso e misterioso, como pedem as intrigantes harmonias de Shostakovich. Mais uma vez, certamente uma escolha consciente, não uma fatalidade.

 

A orquestra teve em todo momento uma atuação à altura do solista, seguindo perfeitamente as precisas indicações de Karabtchevsky. Todos os naipes corretíssimos, sendo o grande destaque para os sopros e a percussão, muito solicitados tanto na obra de Shostakovich quanto na de Stravinsky que seguiu o intervalo.  Acho que grande parte do público ficou, como eu, admirada com a qualidade dessa versão da Sagração da Primavera, extremamente bem estruturada, praticamente sem falhas técnicas e com grande qualidade musical, um feito respeitável em se tratando de obra tão complexa, que exige muita competência de todos os intrumentistas e uma enorme capacidade de coordenação do maestro. A palavra que vem à mente ao ouví-los é coesão, quase sinônima de harmonia, sobre a  qual se apoia todo o edifício musical.  À admiração junta-se a grata antecipação dos momentos musicais que apontam no horizonte carioca.